sexta-feira, 19 de abril de 2024


19/04/2024 - 09h00min
Martha Medeiros 

"Tenho medo de nunca mais ser feliz como fui até agora" 

Não havia sofrido, a não ser as angústias de qualquer adolescente. O que eu havia vivido de tão fenomenal até ali? 

Já contei em entrevistas e talvez em alguma crônica, mas já que ninguém lembra de nada mesmo, vou contar outra vez. Tive um diário quando era adolescente, onde escrevi sobre meus 14, 15, 16 anos. Quando fiz 17, em uma determinada página daquela que já me parecia uma longa existência, registrei: “Tenho medo de nunca mais ser feliz como fui até agora”. Chego a me comover com tamanha inocência. 

Aos 17, eu era virgem. Nunca tinha saído do Brasil. Ainda não trabalhava. Não sabia o que seria quando crescesse. Não havia tido nenhum namoro que durasse mais do que duas semanas. Não havia sofrido, a não ser as angústias de qualquer adolescente. O que eu havia vivido de tão fenomenal até ali? 

Uma infância tranquila, confidências com as amigas, danças em festas, fins de semana na praia, shows e cinema, beijocas e paixonites. Quando passei a acreditar que não viveria nada mais empolgante que isso, envelheci. Ao terminar de escrever aquela frase absurda, meus ombros encurvaram e duas pantufas acolheram meus pés. 

Velhice é quando o que ficou para trás torna-se superior ao que está por vir. Talvez aconteça com quem está chegando perto dos 90 anos: a improbabilidade de novas estreias conduz a um estado natural de nostalgia. Talvez, eu disse. Pode nunca acontecer: há pessoas que, mesmo com muita idade, estão focadas nos 10 minutos seguintes, onde novas estreias as aguardam. 

Uma tatuagem no pulso. Passar o aniversário em outro país. Escrever poemas eróticos. Fazer amizade com alguém 20 anos mais moço e mais inquieto. Mudar radicalmente de opinião (não há prazo para aprender sobre aquilo que não dominamos tanto assim). Uma emoção represada que enfim deságua. É tudo vida em frente. 

Olhar para trás aos 17 anos? Apego às idealizações, covardia, medo. Olhar para trás aos 50, também, mesmo reconhecendo que é cansativo fazer planos e estar sempre a postos para os imprevistos. Eu mesma não vejo a hora de dar minha missão como cumprida e me instalar numa rede com vista para o mar, onde ficarei lembrando de tudo o que vivi dos 17 até aqui, e não foi pouca coisa. 

Tenho um patrimônio respeitável de acontecimentos na minha biografia de cidadã comum, e não acharia ruim viver de recordações entre um gole e outro de vinho. Mas as pantufas estariam ao pé da rede, e uma bengala também, já que viver de lembrança não tonifica os músculos. 

Então sigo me prontificando a incluir páginas extras no meu diário sem fim. Quando fico tentada a achar que o melhor da vida já passou, como estupidamente achei aos 17 anos (“ninguém é sério aos 17 anos”, escreveu Rimbaud), lembro que o dia de ontem é pré-história e listo as virgindades em mim que ainda aguardam serem rompidas. Amanhã mesmo posso vir a fazer algo que nunca fiz.

12/04/2024 - 09h00min
Martha Medeiros

Não há como não absolver o espírito de porco

O mundo seria um lugar melhor se, em vez de abusar de sua acidez e inconveniência, ele usasse armas mais eficazes contra a alienação 


As redes sociais estão lotadas de oba-oba, na contramão das dificuldades que tanta gente passa.Gilmar Fraga / Agencia RBS

Estava perambulando pelas redes, quando encontrei uma postagem no Instagram, a exemplo de tantas outras, mostrando uma seleção de fotos de diversas mulheres 60+ que continuam charmosas, interessantes e seguras com sua aparência. Resolvi dar uma olhada nos comentários. Muitos emojis de aplausos, carinhas com corações no lugar dos olhos e os invariáveis “Musas!”, “Divas!”, etc., etc., até que alguém largou esta: “O que o bisturi e o dinheiro não conseguem, não é mesmo?”. 

Outra postagem: a foto de uma rua arborizada e florida, que estava sendo homenageada por seus moradores num sábado de sol. Eles estavam orgulhosos por ajudar a preservar árvores muito antigas. Entre vários comentários incentivadores, destacava-se este primor de elegância: “Aqui no meu bairro tem uma dúzia de ruas mais bonitas que esta”. 

Não é a reação típica de um hater. Não há ódio explícito no comentário, nem ofensa direta. Aliás, ninguém contesta: o dinheiro compra mesmo procedimentos estéticos, cremes, maquiagem, matrículas na academia. Assim como é verdade, também, que há milhares de ruas exuberantes pelo país. As reações, portanto, não vinham de um mentiroso, nem de uma pessoa bruta. Vinham de um ressentido. Um estraga-prazer. É o que se chama “espírito de porco”, uma expressão idiomática que se aproveita da má fama que o porco tem em relação à limpeza. 

A pessoa com espírito de porco quer apenas tumultuar a diversão alheia, quebrar a boa atmosfera, dar uma achincalhada, a fim de abalar a higienização do assunto. Em sua defesa, ele dirá que está em combate contra a alienação. 

De certa forma, dá para entender. A vida não está fácil para quase ninguém. As redes sociais estão lotadas de oba-oba, na contramão das dificuldades que tanta gente passa. Ao fim de um dia difícil, muitos precisam extravasar sua raiva e cansaço, e soltar uma maledicência direcionada aos “felizes” não parece grave, é até um favor para a humanidade, um antagonismo brando se comparado à vontade de estrangular dois ou três. 

Apresentados os atenuantes, não há como não absolver o espírito de porco. No entanto, o mundo seria um lugar melhor se, em vez de abusar de sua acidez e inconveniência, ele usasse armas mais eficazes contra a alienação. Na mesma tropa de combatentes, há quem incentive a leitura, compartilhe conteúdo de qualidade, denuncie fake news e injustiças, debata ideias – tudo dentro da mesma intenção: acordar quem está em sono induzido. 

Ser desagradável não desperta ninguém. Serve para coisa nenhuma. É só uma poça de lama da qual a gente desvia. O máximo que o espírito de porco consegue é um olhar compassivo e uma interjeição: “coitado”. 

06/04/2024 - 09h00min
Claudia Tajes

Os pêssegos em calda sempre foram um doce sério

Eles fizeram parte dos almoços de família sempre que a minha mãe não estava inspirada para fazer a torta de bolacha dos domingos 

Depois do Silvio Santos eu trago a sobremesa.Lustre / stock.adobe.com

O homem jovem, 40 e poucos anos, bonito, todo moderno em seus gostos culturais, sempre vestido com camisetas de bandas de rock – as mais clássicas ou as tão obscuras que só ele e mais meia dúzia de aficionados conhecem –, chegou ao churrasco dos amigos levando uma lata de pêssegos em calda e outra de creme de leite.

Pêssegos em calda com creme de leite.

Os convidados mais novinhos, muito provavelmente, jamais tinham visto uma lata daquelas fora das prateleiras do supermercado. E quase dá para apostar que nenhum havia parado no corredor das caldas de pêssegos, abacaxis, figos, goiabas, abóboras.

Que fique claro: não estou falando mal dos pêssegos em calda. Eles fizeram parte dos almoços de família sempre que a minha mãe não estava inspirada para fazer a torta de bolacha dos domingos. Mas então éramos crianças e os pêssegos em calda sempre foram um doce sério, não tinham o mesmo encanto do pudim, outra sobremesa que ela fazia bem.

A lata de pêssegos em calda me lembrou de outras coisas que eram parte da vida das famílias e que hoje amargam o ostracismo. Novamente: não que o pêssego em calda esteja arquivado, fabricantes e apreciadores, não me cancelem. Foi só que aquela lata me levou a uma viagem no tempo, e de repente me vi na casa dos meus pais, com tantos e diversos caprichos hoje desaparecidos.

A roupinha xadrez do liquidificador, que combinava com a roupinha do botijão de gás. O Fabrício Carpinejar escreveu que as famílias se transformaram na hora em que a mãe parou de vestir o botijão de gás.

Os conjuntinhos de privada. Uma capa sempre meio peluda que cobria a tampa do vaso sanitário e fazia par com o tapetinho peludo que tornava o ato de sentar ali mais reconfortante. O tal do conjuntinho acabava ficando meio nojento pela água que pingava da descarga e pela sua própria natureza, e de vez em quando era substituído por outro. O cheiro era o de um cachorro molhado eternamente deitado no banheiro.

O abajur de uísque. Esses dias vi um filme da diretora Lucia Murat sobre o golpe de 1964 e lá estava, na casa de uma das entrevistadas, o abajur de uísque JB, um clássico dos anos 1970. Quem não teve um não viveu um capítulo marcante da decoração da casa brasileira.

A TV ligada no programa Sílvio Santos da manhã até a noite. Tudo o que acontecia no domingo era em função do Programa Silvio Santos. Almoço na hora do Qual é a Música? – duas notas, Maestro Zezinho –, banho quando entrava algum quadro chato de competição entre estudantes, janta na mesa tão logo começava o Show de Calouros. Ninguém precisava de relógio no domingo, qualquer criança sabia que ia para a cama quando o Quem Quer Dinheiro? acabasse. Depois, bem depois, veio o Fantástico e a terrível sensação de fim do mundo com aquela musiquinha da abertura anunciando que o domingo já era.

Para encurtar o caso, o churrasco dos amigos chegou ao fim, e a lata de pêssegos em calda se ofereceu para quem quisesse desbravar sabores de outros Carnavais. O creme de leite se mistura com a calda e ameniza a doçura, disse o homem da camiseta de banda, expert no assunto. E todos gostaram e repetiram até limpar a lata.

No próximo encontro com seus pais, os jovens presentes certamente contarão que naquele domingo, ao som de phonk, trap, hyperpop ou outra dessas modernidades, experimentaram uma sobremesa diferente, pêssegos em calda. Eles já ouviram falar?


30/03/2024
CLAUDIA TAJES

Existem mais vendavais previstos no nosso horizonte

Quem vai gostar são os fabricantes de velas. Esperando a luz voltar: mais um dia normal em Porto Alegre.Ruslan Batiuk / stock.adobe.com

No longínquo século 6, na Grécia Antiga, o filósofo Tales de Mileto esfregou um toco de âmbar em uma pele de carneiro e observou que pequenos pedaços de palha eram atraídos para ele. Âmbar, a resina fóssil que deu origem a pingentes, cinzeiros e outros objetos artesanais ao longo dos séculos, notadamente nos nossos anos de bicho grilo. 

Perdão pela simplificação. Se o rapaz do experimento acima se chamasse Tajes de Mileto, não teria se dedicado à filosofia – de certo seria um escriba sem maior importância na sociedade da época – e esqueceria o assunto. É muito provável que sequer tivesse esfregado o âmbar na pele de carneiro, a estirpe dos Tajes, até onde eu sei, não se debruçou sobre os mistérios do mundo.

Só que o Tales era xarope e foi estudar o que havia acontecido. Primeiro pensou que tinha a ver com magnetismo, só que não. Ele havia descoberto a eletricidade estática. Se mais não digo é porque não entendo. Sempre fui um fracasso em física.

A roda do tempo gira e, no século 18, Benjamin Franklin pendura a famosa chave na pipa e vai empinar papagaio na tempestade. Olha a ideia do Benjamin. A coisa vai indo até que esses experimentos e mais todos os que se seguiram – nomes como Galvani, Faraday, Humpry Davy e Thomas Edison devem ser familiares para quem não foi uma nulidade em física – acabam levando ao maravilhoso advento da eletricidade.

Eu-re-ka. Quer dizer, eureka é coisa do Arquimedes, que descobriu no banho o princípio do empuxo. Novamente, melhor consultar a Barsa que confiar nas minhas explicações. Conta-se que Arquimedes ficou tão entusiasmado com sua descoberta que levantou da tina e saiu correndo nu pelas ruas de Siracusa, inaugurando também os preceitos do que viria a ser a saudosa Pedalada Pelada que um dia singrou Porto Alegre.

O que esses mestres todos não imaginariam é que nossa iluminada cidade de outros Carnavais chegaria ao ano de 2024 nas mãos da CEEE Equatorial. E isso, meus amigos, significa que o tempo das luzes já era. Das luzes, da água, da internet e de todas as facilidades que a eletricidade trouxe para a humanidade.

A CEEE Equatorial deixou o evento South Summit no escuro bem quando os participantes discutiam inovação, desenvolvimento y otras cositas que necessitam de energia para acontecer. Falando em inovação: já pensou o caos se Porto Alegre resolvesse investir pesado nos carros elétricos? No dia do aniversário da cidade, o Mercado Público estava às escuras. Carnes, queijos e peixes da Semana Santa virando prejuízo nas geladeiras desligadas.

No domingo, dia 24, 28 mil clientes da área de concessão da companhia ainda estavam sem luz por conta do vendaval de 21 de março. Mas tragédia mesmo foi o menino de 11 anos que morreu eletrocutado ao encostar em um fio solto. E três trabalhadores da companhia, mortos em 2023 por “erros operacionais grosseiros em razão da falta de domínio das funções por desqualificação das equipes”, segundo o Ministério do Trabalho.

Pobre Tales de Mileto. Soubesse que seu pioneirismo ia dar nisso, melhor ter se deitado na pele de carneiro e esculpido um coração no âmbar. Sem fazer a alarmista, prepara. Existem mais vendavais previstos no nosso horizonte.

Quem vai gostar são os fabricantes de velas. Para acender a faísca: vem aí mais uma Oficina do Subtexto da Cíntia Moscovich, com aulas pelo zoom e publicação de um livro no final do curso. Informações: 

cintiamoscovich@mail.com.


19 DE ABRIL DE 2024
CARPINEJAR

Você não está sozinho no mundo

Uma cena comum nos estacionamentos de shoppings é carrinho de supermercado atravessado na frente de veículos estacionados.  O cliente colocou suas compras no porta-malas e apenas empurrou o carrinho para o lado, tirando-o da frente de sua ré, sem se importar em bloquear a passagem de seu vizinho de vaga.

É uma pessoa muito mal-educada, dotada de uma preguiça grosseira. Transferiu a sua responsabilidade para um terceiro, obrigando quem sairá depois a deslocar o carrinho para o setor certo.

O que custava encaminhar o carrinho vazio para o corredor central do estacionamento? Três minutos? Quatro minutos? O que vai interferir na sua hora de ir embora? Admitimos engarrafamento, admitimos filas, mas não aceitamos o intervalo da cordialidade. Temos uma dificuldade de praticar a empatia nos mínimos gestos, no básico da cidadania, naquilo que nem deveria ser mencionado ou alertado de tão óbvio que é.

Educação é respeitar o espaço do próximo. É não querer ocupar todo o espaço. É perceber que você não está sozinho no mundo. Alguém terá que colocar no lixo o papel que você joga no chão, alguém terá que mover o carrinho que você abandona ao léu na área de manobra.

Para economizar o seu tempo, você rouba o tempo do outro, omitindo-se de sua função social, sobrecarregando um desconhecido com as suas tarefas. Trata-se de uma lição que carregamos desde a época da escola. Lembro que, na aula de artes, tão importante quanto pintar era limpar a bagunça ao final do período.

O que você faz você desfaz. O que você tira do lugar você guarda. Representa o princípio da coexistência. Liberdade não pode ser confundida com alheamento ou privilégio.

O egoísmo acaba sendo um atalho da soberba, em decorrência de uma pretensa exclusividade e monopólio das cenas públicas. Por algum desvio psíquico, você jura que possui mais direitos do que deveres. Na mesma linha de descuido generalizado, é impressionante o quanto é natural não dar seta no trânsito.

A maior parte das colisões surge dessa omissão (não é esquecimento).

Se a sua carteira de habilitação não foi indevidamente comprada, você tem consciência de que a seta não é opcional, não é um enfeite, não é uma árvore de Natal no carro, com luzes piscantes: emerge como um item obrigatório, um jeito de avisar aos demais do fluxo de suas decisões e rotas.

Diante do número exorbitante de motoristas que mudam radicalmente de pista, entram abruptamente numa garagem, dobram a rua e não sinalizam, como vamos adivinhar? Existe carro automático, não carro telepata.

Há ainda os condutores com delay, que ligam a seta após ter feito o desvio. Acham que assim consertam o seu erro, porém acidentes não têm replay. Elegância é saber conviver.

CARPINEJAR

19 DE ABRIL DE 2024
OPINIÃO DA RBS

A HORA DO BOM SENSO

Está na hora de as lideranças dos três poderes da República demonstrarem um pouco mais de comedimento e disposição para o diálogo. A conjuntura internacional já está bastante complexa, o quadro fiscal do país inspira cuidados e tudo o que o Brasil não precisa neste instante é de uma escalada de crises institucionais.

Subiu nos últimos dias a temperatura da tensão entre o Congresso e o Palácio do Planalto e entre o parlamento e o Supremo Tribunal Federal (STF). Deve-se sobretudo esperar responsabilidade de altas autoridades para que questiúnculas pessoais e corporativas não se sobrepujem aos interesses do país. Está posto o desafio de exercitar, ao mesmo tempo, a independência e a harmonia entre os poderes.

O foco de estresse entre o Judiciário e o Congresso envolve a legislação sobre drogas, a prisão do deputado federal Chiquinho Brazão, acusado de envolvimento no assassinato da vereadora carioca Marielle Franco, e a possibilidade de instalação de uma comissão parlamentar de inquérito (CPI) sobre supostos abusos de membros do STF e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). 

São temas que também se misturam na altercação entre o Executivo e os parlamentares, em que há disputa em torno de vetos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva a matérias aprovadas, como a que restringe as chamadas "saidinhas" de presos, e a valores de emendas. Junta-se a isso a bronca pessoal do presidente da Câmara, Arthur Lira, com o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, cuja função é autoexplicativa pelo nome da pasta.

O jogo democrático também comporta eventuais fricções entre os poderes. Mas o grau de preocupação é maior quando questões individuais ameaçam o diálogo formal entre as diferentes casas. Lira chamou Padilha de desafeto e, contrariado também com a demissão de um primo do Incra em Alagoas, ameaçou instalar cinco CPIs com potencial de desgastar o governo e o Judiciário e destravar pautas legislativas de interesse da oposição. A abertura de uma investigação no parlamento deve obedecer a princípios como a existência de um fato determinado que mereça apuração, e não a mera chantagem ou vingança. Matérias em tramitação têm de ser analisada por seu mérito, não por vontade de retaliar e demonstrar poder.

Assim sendo, aguarda-se maior moderação e contenção dos poderes, evitando a invasão de atribuições. Se o Congresso considera que o Supremo usurpa suas funções, que não deixe de legislar sobre temas relevantes pendentes. Deve-se lembrar que é o STF o intérprete final da Constituição, mas essa prerrogativa não é um salvo-conduto para extrapolações, como inquéritos que se arrastam sem perspectiva de conclusão. Ao Executivo, cabe a dura missão de ampliar o diálogo para alargar a sua base de apoio com argumentos mais nobres do que a distribuição de verbas e cargos. Até para não precisar recorrer sempre ao Judiciário quando é derrotado no plenário.

Cada poder, portanto, tem a sua parcela de responsabilidade para desescalar as crises e restabelecer de forma funcional o sistema de freios e contrapesos, sem que isso gere mais conflitos. Alguns momentos neste sentido já começam a ocorrer. A polarização política, a aproximação de mais uma eleição e a sucessão no Congresso são combustíveis para a instabilidade. É o momento de o bom senso preponderar.

OPINIÃO DA RBS

19 DE ABRIL DE 2024
INFRAESTRUTURA

A ponte para o futuro de Porto Xavier

Promessa do governo federal é lançar edital para contratar empresa que irá construir a travessia até o final do semestre

Um cidadão de Porto Xavier, município de 9,9 mil habitantes na fronteira com a Argentina, está envolvido há tanto tempo com projetos de infraestrutura na região das Missões, incluindo a ideia da construção de uma ponte internacional sobre o Rio Uruguai, que ganhou o apelido de Jurássico.

Ovídio Kaiser, o Jurássico, era prefeito da cidade em 1980, quando foi criada a primeira comissão binacional para tratar da ponte que ligaria a Porto Xavier com a argentina San Javier, conectada à BR-392. Até hoje a estrutura não saiu do papel. A empresa Coesa Construções e Montagens S/A assinou contrato para fazer a obra em outubro de 2022, mas não conseguiu executar por problemas financeiros. A inexistência da travessia trava o desenvolvimento das Missões, dificulta importações e exportações e mantém a comunidade refém da balsa.

Jurássico não perdeu as esperanças. Ele está confiante de que agora as coisas vão acontecer. O governo federal elegeu a obra como prioridade e está em processo de rescisão do contrato da Coesa, o que demanda prazos legais. A promessa é de que um novo edital será lançado até o final do primeiro semestre de 2024 pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit).

Sonho

A intenção é contratar uma empresa e assinar a ordem de início dos serviços ainda neste ano. Antes de começar a construção, será preciso providenciar o licenciamento ambiental e fazer a desapropriação de imóveis - são 34, conforme a prefeitura. As autoridades locais, que participam de reuniões com o Dnit, acreditam que as obras podem começar em 2025.

- É um sonho represado de quase meio século. Isso causa transtorno e trava o desenvolvimento. A fronteira é muito abandonada. A ponte vai inverter esse processo, e o desenvolvimento vai ser a partir daqui para o resto do Estado - projeta Jurássico, atualmente secretário de Desenvolvimento, Turismo e Mercosul de Porto Xavier.

CARLOS ROLLSING

19 DE ABRIL DE 2024
+ ECONOMIA

Vai nascer uma rede nacional de "xis" "Ajustes" em 45 andares

Ainda em 2017, quando lançou Ô Xiss, a empresária Carla Tellini já dizia que queria levar esse lanche "gauchizado" para o mundo. Chegou a hora: o Grupo Press está lançando o projeto de expansão nacional do Ô Xiss por meio de franquias.

A escolha dessa marca - o grupo tem outras, como Press e Bah - foi baseada na popularidade consolidada na região e na promessa de atrair público diversificado, jovem e descolado, para além de Porto Alegre, onde já tem cinco unidades.

Carla afirma que o foco da iniciativa não é só aumentar a presença da marca, mas também oferecer oportunidades de negócios para empreendedores de todo o Brasil:

- A franquia do Ô Xiss surge não apenas como uma excelente oportunidade de investimento, com projeções de faturamento anual de até R$ 3 milhões, mas também com suporte e expertise do Grupo Press por trás da marca.

A empresária também lembra:

- Ô Xiss foi idealizado já com a intenção de expansão nacional por acreditarmos no potencial de ser uma das melhores operações de lanches e refeições rápidas.

A franquia tem no cardápio, além do xis com ingredientes de qualidade, como pão de produção própria, cachorro-quente, prensado, pratos feitos, sobremesas, milk shakes, porções de fritas e de aipim.

A expansão será feita em três modelos: loja contêiner, a partir de 10 m2 e investimento inicial de R$ 350 mil; de shopping, a partir de 35 m2 e investimento inicial de R$ 450 mil; e de rua, a partir de 55 m2 e investimento inicial de R$ 550 mil.

No dia seguinte à decisão do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado (Iphae) de indeferir a construção de um prédio de 45 andares no centro de Porto Alegre, a Melnick, responsável pelo projeto, afirmou que buscará "as alternativas e os ajustes necessários". Informou que o empreendimento já tinha projeto aprovado, depois de passar por "todos os trâmites requeridos" e agora está em reaprovação. Nessa etapa, ponderou, são "normais manifestações com intuito de adequações solicitadas entre as partes". E garantiu:

"Acreditamos no alinhamento com o Iphae, destacando que a obra somente será iniciada com as devidas aprovações e liberações legais."

O principal argumento do Iphae para o veto é que a altura "não só é três vezes maior que o limite".

foi a "variação" positiva da bolsa ontem, depois de seis dias de queda. Nesse período, o Ibovespa mergulhou de 128 mil pontos para 124 mil pontos. A estabilidade pode ser parada para pensar ou tentativa de reagir à fase de aversão a risco.

MARTA SFREDO

19 DE ABRIL DE 2024
DANIEL SCOLA

A mudança do jornalismo

Claro como a luz do dia, a mídia tradicional não é mais a mesma. Não é preciso ser um gênio para deduzir isso. O mundo está mudando e, junto com ele, nossa profissão. Outro dia encontrei um ex-colega que me disse que, na época dele, era melhor. Respeitosamente, discordei e respondi: "Nossa época foi boa, mas já passou. Vamos olhar para frente e reconhecer que a melhor fase é a atual e assim sucessivamente".

Como em todas as profissões, estamos em permanente evolução. E o jornalismo não é diferente. As transformações são óbvias e bem-vindas. Por exemplo, quando eu comecei e não faz tanto tempo assim, datilografava as notícias numa máquina de escrever. Hoje, minhas filhas nem sabem o que é isso. Na estante da minha sala, mantenho uma máquina semelhante à que eu usava. 

Explico a elas que fiz aula de datilografia e, se errasse uma palavra, poderia ter de jogar a folha fora e começar tudo de novo. Hoje vejo a frustração delas em errar uma palavra no texto do computador e ter que apagar e repeti-la. É curioso imaginar como elas se frustram por tão pouco. No meio da década de 1990, eu sequer poderia imaginar que elas teriam este tipo de decepção.

Anos atrás, cada repórter recebia uma pauta específica e ia em busca da informação. Atualmente, uma das nossas principais funções é desmentir boatos, ser uma espécie de certificador do que está deixando as pessoas em dúvida. E é graças a se adaptar a transformações como esta que estamos sobrevivendo e continuamos relevantes em meio a esse turbilhão.

Outra frente de transformação é a tecnologia. Num passado recente, fiz uma viagem pela RBS à Europa levando dois computadores, uma câmera, um gravador e um microfone. Se fosse hoje, levaria apenas um smartphone. Sinceramente, prefiro os dias atuais. Tudo é bem mais prático. O que não mudou e não deverá mudar com o tempo é a necessidade do homem por trás da máquina. 

Assim espero. Aos apocalípticos que preveem o fim da imprensa diante de criações como a inteligência artificial, lembro que quando surgiu a internet, disseram que era o fim do rádio e de outras mídias tradicionais. Claro que isso não aconteceu. Pelo contrário, o surgimento da internet foi uma evolução extremamente importante para a humanidade e acabou ampliando a importância e o papel do jornalismo.

DANIEL SCOLA

quinta-feira, 18 de abril de 2024


18 DE ABRIL DE 2024
CARPINEJAR

Maquiagem da casa

Minha esposa estranhou que eu estava lavando louça, depois estranhou que eu estava lavando roupa, depois estranhou que eu recolhia nossas peças pelo quarto, depois estranhou que eu varria os farelos do chão da cozinha.

Ela veio me alertar: - Por que está arrumando tudo se a faxineira vem amanhã? Eu respondi: - Justamente por isso. Estou organizando a casa para a faxina. Estou arrumando a casa para a faxineira chegar, para não me envergonhar diante dela.

Empreendo sempre uma pré-faxina. Tenho medo do que a faxineira pensará de mim. Vá que diga que aquele escritor é um porco, que o nosso lar é uma pocilga, que a pia tem louça parada há séculos, com todos os copos, pratos e panelas usados, que a cueca fica presa na calça, que eu largo os casacos pelo chão, que espalho xícaras com restos de café pelos cômodos, que o lixo transborda de papel.

A faxineira conhece os nossos podres. Que, pelo menos, não sejam tão horripilantes assim. Tenho pena dela e de mim, numa compaixão misturada. Dedico a véspera de sua vinda para passar a limpo o meu rascunho e possibilitar que ela entenda a minha letra. 

Eu deixo a casa minimamente bagunçada, controladamente desorganizada, como se fosse um leve caos de ontem, não o apocalipse de uma semana inteira. Ajeito a aparência tentando evitar a profundeza química dos detergentes. Não é mais um terreno baldio, não é mais um território fantasma. Dá para localizar as chaves, o celular, a cabeça. Não vejo como um trabalho inútil, um esforço em vão.

Só não quero assustar a faxineira. Sabe como é difícil encontrar uma boa faxineira hoje. Eu me torno seu assistente. Se ela já reclama do serviço pesado, não tem noção do que escapou de presenciar. Aparo o ambiente, rearranjo o inferno. Meu gesto representa uma pertinente redução de danos. Além de preservar a minha imagem, não ofereço motivos para aumento da diária sob alegação de insalubridade.

Às vezes, exagero, invento de organizar demais, sou tomado pela serotonina, pela endorfina e pela dopamina do exercício físico e não sei parar o que iniciei. Eu me excito com a transformação milagrosa do cenário e encero o chão, e limpo as vidraças, e passo as camisas. Daí entro em dúvida sobre adiar ou não a faxineira. Não sobra muita coisa para ela.

Mas não tenho como correr esse risco: se eu a dispensar uma vez, ela pode ocupar o meu dia fixo com uma nova pessoa, e terei que suplicar pelo seu retorno como contratante suplente e esporádico. Faxineiras são extremamente disputadas.

Então, de noite, começo a bagunçar um pouco tudo o que ordenei, ocultando a minha performance higiênica, despistando a assepsia do lugar com um toque de baderna. Assim ela não irá reclamar também da falta do que fazer.

CARPINEJAR

18 DE ABRIL DE 2024
+ ECONOMIA

Vetado prédio de 45 andares no Centro

O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado (Iphae) indeferiu a construção do prédio de 45 andares da Melnick no centro de Porto Alegre. Conforme o órgão, recursos nesse âmbito administrativo são possíveis "somente se a empresa adequar o projeto à altura máxima permitida", que é de 15 andares ou 45 metros.

O principal argumento é de que a altura do projeto "não só é três vezes maior que o limite de pavimentos estabelecido pela portaria", como "mais que o dobro do número de pavimentos identificados nos edifícios mais altos do entorno do Museu (Júlio de Castilhos, foto), que situa-se entre as cotas mais altas do centro".

Ainda existe possibilidade de uma batalha jurídica em torno do projeto, mas no setor imobiliário esse tipo de recurso é considerado "difícil", inclusive por envolver desgaste de imagem. Em setembro passado, o CEO da incorporadora, Leandro Melnick, havia admitido adaptações no projeto:

- Faz parte da aprovação do projeto a conversa com as partes relacionadas. Entendemos que, como está, terá impactos positivos. Mas não está concluído, está em tramitação, que vai levar a várias adaptações.

A coluna fez contato com a Melnick para saber qual será a posição da empresa sobre o projeto, mas não recebeu retorno até o fechamento desta edição.

Em pouco mais de 15 dias, o dólar saltou de R$ 5 para R$ 5,232, como fechou ontem, depois de recuo de 0,5%. A alta tem componentes nacionais e internacionais e um contexto que inquieta o mercado: o aumento da dívida pública do Brasil, já elevada.

A confirmação de que a meta de superávit de 0,5% do PIB prevista para 2025 virou novo compromisso de déficit zero precipitou revisões de outros indicadores, como o juro, tanto o básico quanto o futuro, que indexa financiamentos a empresas, ou seja, a investimentos.

Ao apresentar o primeiro esboço do orçamento de 2025, o Ministério do Planejamento mostrou sua projeção da trajetória da dívida líquida pública. Mesmo na versão oficial, a constatação é óbvia: vai piorar antes de melhorar.

A estimativa vê aumento da dívida até 2028, para só então começar a declinar, lentamente. E é significativo que mostre elevação mais expressiva entre 2025 e 2026. Pelos dados do Ministério do Planejamento, no ano da eleição presidencial a dívida subiria 1,2 ponto percentual, a maior variação da série histórica apresentada.

É preciso, ainda, acrescentar que, sim, houve imprevistos, especialmente no cenário externo. O risco de ampliação de um conflito no Oriente Médio não estava no horizonte.

No entanto, a dependência do aumento de receita na fórmula do ajuste fiscal foi amplamente apontada como fator de risco maior. O controle de gastos é mais controlável, disseram sete em 10 economistas. Em um mundo instável, faz diferença.

MARTA SFREDO

18 DE ABRIL DE 2024
BÔNUS PARA JUDICIÁRIO MP E DEFENSORIA

PEC que turbina salário de juízes avança no Senado

A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado aprovou ontem a proposta de emenda à Constituição (PEC) que concede "bônus" na remuneração de magistrados, procuradores e promotores da ativa e aposentados, o quinquênio.

O relator da PEC, senador Eduardo Gomes (PL-TO), acatou emendas que estendem o penduricalho para membros da Advocacia Pública da União, dos Estados e do Distrito Federal, membros da Defensoria Pública e ministros e conselheiros de Tribunais de Contas. O texto segue, agora, para o plenário da Casa.

A proposta estabelece o pagamento de adicional por tempo de serviço de 5% do salário das carreiras da magistratura e do Ministério Público a cada cinco anos, que podem chegar até o máximo de 35% do teto constitucional. O texto é defendido pelo presidente da CCJ, Davi Alcolumbre (União-AP), e pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).

Hoje, o limite de pagamento do funcionalismo público federal é de R$ 44.008,52, que corresponde ao salário dos ministros do STF. Como o adicional é uma verba indenizatória, será acrescido à remuneração sem entrar no abate-teto.

A PEC foi aprovada por 18 votos a favor e sete contrários. Foram contra a proposta Alessandro Vieira (MDB-SE), Beto Faro (PT-PA), Eduardo Girão (Novo- CE), Jaques Wagner (PT-BA), Oriovisto Guimarães (Podemos- PR), Otto Alencar (PSD-BA) e Rogério Carvalho (PT-SE).

Sergio Moro (União-PR), ex-juiz federal, e Flávio Bolsonaro (PL-RJ) estão entre os favoráveis ao texto.

Tramitação

No plenário, a PEC precisa ser aprovada por 49 votos dos 81 senadores, em dois turnos. Ainda não há data para o texto ser pautado, segundo a assessoria da presidência do Senado. Passada essa etapa, a proposta será encaminhada para a Câmara e precisará do apoio de 308 dos 513 deputados, em dois turnos.

Estimativa do Centro de Liderança Pública diz que o efeito inicial é de cerca de R$ 1,8 bilhão. Segundo o estudo, o quinquênio vai beneficiar 31.822 dos 266 mil magistrados, procuradores e promotores que atuam no país. O levantamento também estima que 17,8 mil membros do Judiciário e do Ministério Público terão remuneração mensal maior que o teto constitucional.


18 DE ABRIL DE 2024
ROTA DE COLISÃO

Tensão entre poderes volta a escalar

Lira ameaçou instalar CPIs para pressionar governo e se reuniu com Alexandre de Moraes, que foi ao Senado de surpresa ontem

Em novo desdobramento da crise entre poderes, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), sinalizou intenção de autorizar a instalação de cinco comissões parlamentares de inquérito (CPIs) simultâneas. Um dos pedidos protocolados tem como objetivo investigar supostos abusos cometidos pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

O movimento ocorre na esteira de episódios que desgastaram a relação entre o Congresso e o Palácio do Planalto. Na semana passada, Lira chamou o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, de "incompetente". Além disso, um primo do presidente da Câmara foi demitido esta semana de um cargo federal que ocupava em Alagoas.

O plano de liberar a criação das CPIs foi comunicado por Lira em uma reunião de líderes na terça­feira. No total, são oito requerimentos pendentes, mas o regimento só permite cinco comissões simultâneas. Alguns dos temas dos colegiados são relacionados à segurança pública, área que tem a pior avaliação do governo.

O objetivo é pressionar o Planalto. As CPIs mudam a rotina da Casa e podem dificultar a tramitação de projetos estratégicos, além de servirem de palanque para a oposição em um ano eleitoral.

No caso da comissão para investigar o STF, a abertura indicaria um gesto de Lira aos setores da oposição que pressionam por um freio aos poderes do Judiciário.

O pedido da CPI foi protocolado no final de novembro, após a coleta de 171 assinaturas requeridas pelo regimento interno da Casa. A pressão aumentou depois da prisão, autorizada pelo STF, do deputado Chiquinho Brazão (sem partido-RJ), suspeito de ser um dos mandantes do assassinato da vereadora Marielle Franco.

Urgência

Em outra frente da ofensiva, Lira incluiu na pauta do plenário o requerimento de urgência para projetos de lei contra o MST (leia mais na página 9). Lira também sinalizou que incluiria na pauta outro requerimento de urgência, referente a um projeto de decreto legislativo que susta o decreto do governo que regulamenta a Lei de Igualdade Salarial, sancionada em 2023, mas acabou recuando.

Ontem, Lira teve reuniões com o ministro da Casa Civil, Rui Costa, e com o ministro do STF Alexandre de Moraes, que foi de surpresa ao Congresso (leia ao lado).

Diante do agravamento das tensões, o governo destravou a liberação de emendas parlamentares esta semana. Da semana passada para cá, o Ministério da Saúde autorizou o pagamento R$ 4,8 bilhões. Deste total, R$ 2,5 bilhões saíram ontem. Um dos motivos do tensionamento entre os poderes é justamente o veto a parte do valor que foi aprovado pelos parlamentares para emendas no orçamento deste ano.


Intenções

Deixe-me ver se entendi bem: uma ditadura fundamentalista despeja 300 mísseis e drones sobre um país democrático, do tamanho de Sergipe, e, para muitos analistas e militantes ideológicos, isso é apenas "um gesto", sem a intenção de machucar ninguém ou de iniciar uma escalada de violência. Além do mais, dizem eles, os mísseis não eram de última geração e os representantes dos aiatolás até avisaram antes.

Não demora, algum gênio da geopolítica defenderá a necessidade de Israel se desculpar com o Irã por ter sido atacado e, graças à sua capacidade tecnológica e às suas parcerias geopolíticas, ter conseguido se defender. Não me surpreenderia se algum dos radicais que hoje comandam o Itamaraty elogiasse o "carinho" do Irã em Israel.

Vamos aos fatos: um único míssil oco disparado por uma ditadura sanguinária contra qualquer país democrático seria um motivo mais do que justificável para uma reação e para uma condenação internacional. Muitos condenaram. O governo brasileiro, não. Dias depois, diante do espanto planetário com sua posição omissa, tentou emendar, mas de forma genérica e sem muita convicção.

Não importa se as armas foram disparadas de ré ou se eram enferrujadas. O Irã lançou 300 artefatos contra cidades densamente povoadas. Se isso não é um ato de agressão descomunal, talvez os fanáticos precisem jogar uma bomba atômica sobre Tel Aviv para serem, de fato, compreendidos. Aliás, penso que esse é o seu objetivo. 

Só precisam de um pouco mais de tempo para dar o salto definitivo no seu programa nuclear. O pretexto para a agressão iraniana foi a eliminação de líderes terroristas em um prédio anexo à sua embaixada na Síria. Consta que pelo menos dois deles tiveram participação direta no planejamento dos atentados de 7 de outubro, quando o Hamas assassinou 1,2 mil pessoas em Israel e sequestrou mais de 200, das quais 130 permanecem em cativeiros na Faixa de Gaza.

Tenho recebido pelas redes sociais manifestações de iranianos exilados ou expulsos de seu país. "Somos o Irã, não a República Islâmica" é um lema que começa a ganhar força entre os que já compreenderam que o regime de Teerã não é uma ameaça apenas para Israel, mas sim para o futuro da humanidade. E eles não são poucos.

Jamais defendi a guerra e sofro pelos palestinos e pelos israelenses atingidos pelo conflito. Deveríamos fazer mais por eles. Mas, se o Irã não for devolvido aos iranianos que pedem paz, liberdade e democracia, a conta será muito alta no futuro. Torço para que a conversa civilizada e a diplomacia consigam resolver, antes que seja tarde.

TULIO MILMAN 

quarta-feira, 17 de abril de 2024


17 DE ABRIL DE 2024
CARPINEJAR

Primeiro salário

O que você fez com seu primeiro salário? No primeiro emprego, experimentamos a sensação de que estamos ricos. Não importa a natureza do ofício. Partimos do zero para dispor de recursos próprios. Pode ser uma ninharia, mas você conquista um valor finalmente seu, com a liberdade de aplicar onde quiser.

Há aqueles que nem esperam o dinheiro pingar na conta e, com a confiança nova de assalariados, já abrem a torneira, assumindo compras a prazo. Minha irmã Carla Nejar recém havia ido morar sozinha, só contava com a sua mala e seu travesseiro num espaço vazio. Ela olhou aquele travesseiro solitário em cima da bagagem e parcelou um colchão de casal. Não mais dormiria apertada numa cama de solteiro, apenas apertaria o orçamento.

Há quem seja grato com os pais, que sempre arcaram com o sustento da casa, e repasse o montante inteiro a eles como um ressarcimento simbólico pelas despesas da vida. Minha esposa tomou essa atitude altruísta.

Eu fui quase na mesma linha. Realizei um rancho no melhor supermercado do bairro. Não consegui levar tudo o que eu queria, mas me senti, de modo inédito, um provedor. Ainda me lembro da cara desconcertada da minha mãe quando comecei a desempacotar os produtos e encher a geladeira.

Ela somente me perguntou: - Você assaltou algum banco? Eu lhe respondi com bom humor: - Sim, me ajude a guardar tudo antes que a polícia chegue.

Aliás, a minha mãe utilizou seu vencimento inicial de seu trabalho na Reitoria da UFRGS, em que redigia ofícios e correspondências, para pagar um curso de datilografia. Ela privilegiou a sua formação. Meu pai também destacou a sua carreira, financiando seu livro de estreia, Sélesis.

Há quem coloque em prática um desejo reprimido de consumo, adquirindo um item pessoal que jamais receberia no Natal ou no aniversário. Caro ou supérfluo, é um artigo desdenhado pelos mais próximos, que não entendem a sua importância.

Minha amiga Débora Tessler, em sua estreia na Carteira de Trabalho, gastou os 350 pilas do contracheque em uma carteira de couro classuda, na cor preta, na antiga loja de joias Natan. Ela namorou a vitrine por longos meses, rezando para que ninguém a antecipasse.

Eduardo Nasi, meu compadre que mora em São Paulo, arrebatou todos os gibis de uma banca de revista. Vingou a sua infância.

Vinicius Veloso, hoje dono de uma rede de restaurantes, teve seu dia de Fantástica Fábrica de Chocolate na loja Kopenhagen. Sua gula aconteceu no balcão, em que abria caixas e saboreava as barras e os tabletes diante de atônita vendedora. Jamais esqueceu a explosão do bombom de cereja na boca. Acredita que o gosto do sucesso é um bombom de cereja.

Há quem exagere num passatempo. Meu confidente, Zé Klein, acostumado a ficar 40 minutos num fliperama com cinco fichas, anoiteceu no lugar com 50 fichas. Saiu tonto de lá, tentando obliterar a gastança com o mumu dos churros.

Há quem transfira os sonhos aos outros. É o caso da minha personal trainer Raquel Dias Dutra, que deu uma casa da Barbie para sua sobrinha Nicole. Nem preciso dizer que passou um final de semana brincando junto.

Há quem perceba a situação como um degrau para ingressar no mundo adulto. O psicanalista Mário Corso botou um cebolão no pulso, orgulhoso pela possibilidade de informar as horas aos demais.

Engraçado mesmo foi a minha nutróloga Ana Farnese, que voltou para casa com 10 potes de palmito. O palmito era item chique, inacessível, restrito às mesas mais abastadas. Ela nunca tinha provado. Mas comeu tanto, numa overdose tamanha, que até hoje não consegue suportar cheiro de palmito por perto.

CARPINEJAR

17 DE ABRIL DE 2024
OPINIÃO DA RBS

À ESPERA DA REGULAMENTAÇÃO

Espera-se que o governo federal não tarde muito mais em enviar ao Congresso os projetos de lei complementar que regulamentarão a reforma tributária. Trata-se de uma etapa quase tão relevante quanto a aprovação da emenda constitucional da proposta no ano passado, após mais de três décadas de tentativas frustradas de reformular os impostos sobre o consumo no país. São muitos os pontos sensíveis que estão pendentes e são cruciais para determinar a potência e a qualidade do futuro sistema. Entre as indefinições está a alíquota-padrão do imposto sobre valor agregado (IVA) a ser criado. Anteriormente à votação da reforma, o Ministério da Fazenda calculava um percentual de 27,5%, mas ainda sem considerar as alterações no texto aprovado.

Era aguardado o envio dos textos nesta semana, mas é possível que fique para a próxima, após o ministro Fernando Haddad retornar da viagem aos EUA, onde participa de reuniões do Fundo Monetário Internacional (FMI), do G20 e do Banco Mundial. Deve ser lembrado que, pela complexidade do tema, a regulamentação merece máximo cuidado.

Mesmo que as alterações no sistema tributário só entrem em vigor em 2026, não seria uma boa sinalização deixar de vencer esta fase ainda em 2024. Um complicador é o fato de o país estar às vésperas das eleições municipais, quando usualmente o Congresso fica quase às moscas em grande parte do segundo semestre. O tempo é exíguo para tratar de forma adequada uma matéria em que cada detalhe importa. Dar conta desta etapa seria importante para ter prazo confortável no próximo ano para estabelecer as normas infralegais, deixando de criar riscos de atropelos em 2026.

Haddad e o presidente da Câmara, Arthur Lira, tinham no final de março a meta de finalizar a apreciação dos projetos de lei em junho. É um objetivo bastante ousado. O próprio deputado sinalizou a empresários que a regulamentação seria bem mais discutida do que a emenda constitucional. 

Ademais, nos últimos dias subiu a temperatura entre o governo e Lira, após a votação relativa à prisão do deputado federal Chiquinho Brazão, apontado como um dos possíveis mandantes do assassinato da vereadora carioca Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes. Espera-se que Lira separe os assuntos e não promova nenhum tipo de retaliação que afete a tramitação da reforma ou leve a uma desidratação da proposta ainda maior. Essa não é uma pauta do Executivo, mas do país, em que o parlamento também foi protagonista e é igualmente responsável.

No início do ano, a pasta da Fazenda organizou 19 grupos de trabalho para discutir o projeto de lei e tratar de tópicos como cesta básica, cashback, regimes específicos, imunidades, imposto seletivo e comitê gestor do futuro Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). A previsão é de que os temas sejam agrupados em dois textos. Um deles tratará das regras do imposto seletivo e dos novos tributos criados, a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), de competência federal, e o IBS, de Estados e municípios. O segundo regulamentará o comitê gestor do IBS e as regras sobre as disputas entre os contribuintes e os fiscos.

O primordial é não se afastar do princípio da simplificação, da não cumulatividade e do menor número possível de exceções, para evitar uma alíquota geral mais elevada.

OPINIÃO DA RBS

17 DE ABRIL DE 2024
EM MOVIMENTO

Grupo RBS divulga pesquisa Persona

Estudo inédito, que foi apresentado no Instituto Caldeira, mostra os perfis, comportamentos e hábitos de consumo dos gaúchos

O Grupo RBS apresentou os resultados da pesquisa Persona na manhã de ontem, em evento para convidados no Instituto Caldeira, em Porto Alegre. Representantes de clientes, agências, entidades, imprensa e parceiros puderam conferir e participar de um bate- papo sobre o estudo inédito, encomendado pela RBS e realizado em parceria com as empresas de pesquisa Coletivo Tsuru e Cúrcuma. A pesquisa mostra os perfis, comportamentos e hábitos de consumo do gaúcho em meio às mudanças contemporâneas.

- A maior relevância de um projeto como esse é a RBS poder entregar ao mercado essa expertise no consumidor gaúcho. A gente é especialista no gaúcho e entende como ele se relaciona com as marcas, especialmente seus hábitos de consumo, sua identidade. Porque, afinal, somos gaúchos. Isso faz toda a diferença para a nossa relação de negócios com as marcas, com os nossos clientes, e a gente quer, hoje, também, poder entregar isso para quem está com a gente - destacou Caroline Torma, diretora-executiva de Marketing da RBS, à reportagem.

Os resultados do estudo mostram o que se transformou na percepção sobre o povo do Rio Grande do Sul ao longo dos últimos anos. A diretora-executiva de Mercado do Grupo RBS, Patrícia Fraga, deu início ao evento introduzindo o conceito do gaúcho em movimento. A ocorrência de uma abertura maior para o novo e para o mundo faz com que ele tenha outros comportamentos, inclusive em relação ao consumo. A pesquisa, por sua vez, traz novas nuances e insights relevantes para as marcas que desejam se comunicar com esse público, argumenta Patrícia.

- O mundo em que a gente vive é tão dinâmico e vive em transformação. Conhecer nosso consumidor em profundidade continua sendo um pilar para as boas estratégias de negócio e relevante para a construção dos produtos - afirmou.

Descobertas

Ao lado de Caroline Torma, o comunicador Luciano Potter apresentou as principais descobertas do estudo. O ponto de partida é o entendimento de que apenas o retrato da tradição parece não conseguir mais representar o povo do Rio Grande do Sul em sua totalidade. O gaúcho de 2024 não está apenas preservando a tradição, está em movimento. Nesse sentido, uma das características mais fortes do morador do RS é o afeto, responsável por colocá-lo em movimento, com destaque para a família.

- Este é o caminho para conhecer mais e melhor os gaúchos de hoje - apontou Potter.

A tradição continua presente como pano de fundo, em maior ou menor grau, e sentir-se gaúcho é um estado de pertencimento e uma condição coletiva. A diferença está, agora, na abertura a novidades e mudanças. A pandemia intensificou essa abertura para o mundo e a essência afetuosa do gaúcho.

- Uns mais abertos, outros mais fechados, cada um no seu tempo. O novo gaúcho é assim - sintetizou.

FERNANDA POLO

17 DE ABRIL DE 2024
HISTÓRICO E ESSENCIAL

Aos 80 anos, Pronto Socorro quer seguir crescendo com Porto Alegre

Instituição de saúde inaugurada em 19 de abril de 1944 passou por várias reformas e tem projeto de expansão para 2028

Quando o prédio de cinco andares que abriga o Hospital de Pronto Socorro de Porto Alegre (HPS) foi erguido no bairro Bom Fim, na década de 1940, o cenário da Capital era bem diferente. O movimento de pessoas e veículos era menor, assim como os índices de violência. As mudanças demográficas fizeram com que a instituição de saúde fosse se adaptando, tornando-se referência no atendimento de casos de trauma para o Rio Grande do Sul. É com esse status e um novo projeto de expansão em vista que o hospital completa 80 anos na sexta-feira.

Até a inauguração da sede localizada no Largo Teodoro Herz, entre as avenidas Osvaldo Aranha, Venâncio Aires e José Bonifácio, em 19 de abril de 1944, o serviço de assistência em saúde de Porto Alegre para casos urgentes funcionava no Paço Municipal. De acordo com a diretora-geral do HPS, Tatiana Breyer, a instituição começou a ser construída no governo de José Loureiro da Silva e foi entregue já na gestão de Antônio Brochado da Rocha, quando a cidade tinha hospitais que atendiam basicamente casos clínicos e de pediatria.

Em 2004, o prédio histórico ganhou um anexo, com acesso pela Avenida Venâncio Aires, para abrigar setores administrativos. A entrada principal do hospital também foi adaptada, anos depois, para que os pacientes tivessem um local coberto para aguardar atendimento.

Mais recentemente, a instituição passou por melhorias como as reformas das unidades de terapia intensiva (UTIs) pediátrica e do quarto andar, a criação de uma enfermaria de trauma pediátrico e a aquisição de equipamentos para diferentes setores. Já o banco de sangue do hospital, que passou anos fechado devido à falta de uma equipe especializada, foi reaberto em 2023. Mesmo assim, Tatiana admite que ainda há questões estruturais importantes a serem resolvidas:

- Tem a questão do telhado, que já é um problema crônico e que agora finalmente vai sair. Assinamos o contrato para começar a reforma. Tem a reforma da UTI de queimados, que para nós também é fundamental. Estamos reformando toda a parte de rede de água quente do hospital. Ainda tem parte de geradores e infraestrutura de rede de gases.

Violência

Em relação às principais mudanças ocorridas nos atendimentos no decorrer dos anos, a diretora-geral cita o aumento da circulação de automóveis, da violência e da gravidade dos feridos. Outro fator é o envelhecimento da população. Diariamente, de cinco a seis idosos chegam ao HPS com algum membro quebrado, devido a quedas em casa.

- Os meus amigos do Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) dizem que, dentro do atendimento pré-hospitalar, antigamente traziam os pacientes com uma série de ferimentos. Agora, muitas vezes não conseguem nem trazer, porque as pessoas morrem no local, devido ao calibre do armamento do crime organizado - comenta.

Conforme Tatiana, o HPS também atua como sinalizador do funcionamento da rede de saúde de Porto Alegre e da Região Metropolitana. Isso porque, quando existe algum problema em outro hospital, a procura pela instituição aumenta - algo que ocorreu nas últimas semanas, devido a questões como troca de gestão, greves e suspensão de atendimentos em hospitais de municípios vizinhos:

- Percebemos que as pessoas têm urgência em resolver seus problemas. E, na unidade de atenção primária, às vezes há uma certa dificuldade de ter os exames prontamente. Por isso temos essa procura enorme de pacientes pela nossa porta de entrada. Isso acaba superlotando um lugar que deve atender coisas mais graves, como o acidente de trânsito e todas as questões de violência.

JHULLY COSTA

17 DE ABRIL DE 2024
MÁRIO CORSO

O retorno da corrida espacial

Cresci durante a corrida espacial, o duelo tecnológico por conquistas no espaço entre EUA e Rússia. Soube por Iuri Gagarin que a Terra era azul. Assisti na TV ao homem pisar na Lua. Lembro-me da comoção pela primeira foto da Terra tirada do espaço. Meu imaginário era alimentado por Perdidos no Espaço, Os Jetsons e Jornada nas Estrelas. Acreditava que colonizar o espaço seria nosso destino natural. O sonho acabou quando estudei física e biologia.

Como seria viver em Marte, já que Elon Musk, com a companhia SpaceX; Jeff Bezos, com a Blue Origin; e Richard Branson, com a Virgin Galactic; querem enviar pessoas para lá? A temperatura média é de 55 graus negativos. A atmosfera é 95% de gás carbônico e a pressão é 0,6% da nossa. A gravidade é 38% da terrestre. Sem escudo magnético e com camada gasosa rala, a radiação solar é 20 vezes maior do que a terráquea.

Nosso corpo foi esculpido pela evolução para viver aqui, adoece em outras condições. Nos filmes de viagens espaciais não se fala da anemia do astronauta, da perda de massa muscular e óssea, do aumento dos níveis inflamatórios, de disfunções cardíacas, imunológicas e hepáticas? A lista completa não cabe na coluna.

Para contornar o ambiente inóspito de Marte - fora a gravidade que é impossível -, seria necessário construir uma bolha, provavelmente enterrada para minimizar a radiação, e obter oxigênio não se sabe de onde para simular as condições terrestres. Seria como uma vida em submarino, atentos a não sucumbir à brutal diferença de pressão.

Quando a Terra começa a sofrer as consequências do uso predatório da natureza, e o desafio é minimizar esse impacto, para que serve planejar uma colonização inviável?

O filme Blade Runner cria uma distopia em que nosso planeta estaria destruído, e os mais afortunados viveriam em colônias extraterrestres. A obra capta a ideia de "azar do planeta", e os eleitos escapam do ocaso terrestre. Seria essa a fantasia subjacente? É essa a resposta dos bilionários para o aquecimento global?

Ao reaquecer o imaginário da corrida espacial, eles vendem a ilusão de que o corpo humano não teria limitações. A promessa de contornar o impossível é valiosa mercadoria simbólica. Ela ativa a onipotência infantil latente em todos. Eles vendem mitos, a terra prometida, um lugar no céu para ser feliz.

Quando é que voltaremos a ser adultos e não confundir filmes com a realidade?

MÁRIO CORSO

terça-feira, 16 de abril de 2024


16 DE ABRIL DE 2024
CARPINEJAR

Depois dos 80 anos dos pais

Depois que os pais completam 80 anos, não se deve mais brigar com eles. Não se deve mais querer mudá-los ou ter razão. Eles são daquele jeito, entenda e respeite.

Tomei essa decisão definitiva. Não discuto mais com os meus pais. Não importa o que aconteça, não importa se concordo ou discordo deles, não importa se passam pano para um irmão que errou feio, não importa se me posiciono contra a sua orientação política ou sua opinião estapafúrdia, não importa se preciso tolerar disparates do quanto o passado era melhor.

Eu me calo na mais funda paciência. Não me precipito, não permito que a ansiedade vire falta de tato, não aceito que a pressa desemboque na grosseria, não facilito ressentimentos. Eu transformei o meu silêncio em cuidado. Apenas observo e agradeço a bênção. Minha mãe tem 84 anos. Meu pai tem 85.

Nenhum desentendimento será maior do que o meu amor por eles. O amor prevalece e reina pela paz.

Tudo com que eu poderia me indispor, tudo o que eu poderia apontar, tudo de que eu poderia reclamar: já fiz antes. Minha carência da infância acabou, minha revolta da adolescência findou, sou adulto para não ser mais levado pela mão nervosa da passionalidade.

Agora é o momento da cristalização de nossos laços, a colheita daquilo que foi plantado, a reverência aos dois pelos exemplos oferecidos ao longo de riquíssima existência. Assim como os pais se aposentam do serviço, também merecem a aposentadoria de nossas críticas, de nossas restrições, de nossos senões.

Deixo que errem, deixo que bradem, deixo que transpareçam insatisfações, deixo que xinguem as minhas limitações e meus defeitos. Eles têm o direito de ficar de mal comigo, eu não tenho mais esse privilégio.

Eu me farei de louco quando eles se mostrarem estremecidos, não aprofundarei o mal-estar, esquecerei possíveis tensões, seguirei adiante, trocarei de assunto, confiarei a eles a minha risada mais honesta de quem acolhe e reparte as imperfeições.

O que me cabe é me manter próximo, atento e acessível a qualquer necessidade. Ninguém escuta pedido de socorro permanecendo longe. Darei presentes, pagarei almoços e jantares, surgirei imediatamente sempre que for chamado. Não se brinca com o tempo. Não se debocha do destino. Todo dia é uma eternidade para quem ultrapassou os 80 anos.

O que não desejo, de modo nenhum, é perdê-los durante uma ruptura emocional, estando brigado, estando sem falar com eles.

A culpa costuma aparecer nas nossas distrações, o remorso se aproveita dos nossos pequenos atos egoístas de isolamento. Uma distância momentânea hoje é fatal. Você julga que interrompeu a comunicação ocasionalmente e não percebe que se trata de um instante decisivo.

Jamais vou parar de conversar com eles, jamais cairei na tentação da birra, jamais agirei com chantagem, jamais bloquearei o contato como se fosse um ex-relacionamento, jamais ignorarei alguma ligação.

Não é medo da morte, é medo da vida, de não valorizar a vida que resta. Será assim até nosso último dia juntos, até sermos cobertos pela saudade.

CARPINEJAR